Uma longa sombra caiu sobre a democracia do Brasil há 60 anos esta semana, deixando um arrepio que ainda pode ser sentido hoje. Em 31 de março de 1964, um golpe militar começou para destituir o presidente de esquerda João Goulart. Criou uma ditadura repressiva que durou 21 anos, que muitos brasileiros consideram o capítulo mais sombrio da história moderna do país.
Porém, a mando do atual líder esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva, a data passou sem comemorações oficiais. A razão parece ser evitar tensões com as forças armadas do país, que têm atraído atenção desconfortável ultimamente.
Os investigadores da polícia acreditam que importantes militares estão envolvidos numa conspiração para impedir a vitória eleitoral de Lula no final de 2022, com o objetivo de manter no poder o seu rival derrotado de extrema direita, Jair Bolsonaro. Embora o plano não tenha sido executado, relatórios emergentes sugerem que um colapso democrático é iminente. Bolsonaro nega qualquer irregularidade.
Apesar das semelhanças de hoje, Lula minimiza o aniversário do regime de 1964. “Não vou insistir nisso, vou fazer este país avançar”, disse ele em fevereiro. A posição do líder consternou alguns aliados de esquerda, que querem que o governo homenageie as vítimas de um regime que restringiu as liberdades e torturou, prendeu e matou opositores. Como sindicalista, Lula foi preso por liderar greves naquele período.
Desde que voltou ao cargo para um terceiro mandato, o presidente tem procurado melhorar as relações com as Forças Armadas que apoiam Bolsonaro, ex-capitão do Exército e admirador da ditadura. Num momento delicado para os militares, um funcionário do governo me disse que a intenção era não envergonhá-los ainda mais.
Mas alguns críticos temem que a falta de comemoração no Estado esteja a encorajar narrativas revisionistas. Eles traçam uma ligação direta entre tal perdão e 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores radicais de Bolsonaro saquearam o Congresso, o Supremo Tribunal e o palácio presidencial, dias após a posse de Lula. Os manifestantes apelaram à intervenção militar, alegando, sem provas, que as eleições tinham sido fraudulentas.
Os defensores do golpe de 1964, que contou com o apoio da mídia, da classe média e da elite empresarial, chamam-no de “revolução” que salvou o país do comunismo. “A verdade é que o governo militar levou o Brasil ao pleno desenvolvimento”, dizia uma circular do grupo bolsonerista de WhatsApp. “Foi um enorme fracasso permitir que os manifestantes do passado recuperassem os seus direitos políticos”.
Embora o número oficial de mortes de 434 pessoas seja muito inferior ao registado sob o regime militar na Argentina ou no Chile, os defensores dos direitos humanos rejeitam a noção de que o Brasil é uma ditadura “suave”. Cerca de 20.000 pessoas foram torturadas.
Num comício comemorativo em São Paulo, um dos vários eventos realizados por ativistas, as críticas a Lula foram que a sua estreita vitória eleitoral – com apenas 51 por cento dos votos – significava que ele deveria governar de facto.
Lucia Fabbrini, 84 anos, que teve amigos torturados, presos e mortos durante a ditadura, segurando uma placa que dizia “Lembre-se para não esquecer”, diz sobre a abordagem do governo: “Há coisas nos bastidores. Não sabemos.” Foi “frustrante e decepcionante”, acrescenta ele. “A dor ainda está lá.”
Mas as comparações históricas não vão tão longe. Embora o funcionamento exacto do complô de 2022 ainda não seja totalmente conhecido, parece ter parado precisamente devido à falta de apoio entre os principais generais. Em declarações aos investigadores, ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica disseram ter alertado Bolsonaro contra tal caminho. Reconhecendo o golpe de 1964, os Estados Unidos pressionaram pelo respeito pelo processo eleitoral, tanto de forma pública como privada.
Em última análise, a transferência do poder para Lula no ano passado demonstrou o compromisso das forças armadas brasileiras, pelo menos como instituição, com a ordem democrática. Mas é difícil ver como a actual polarização política na sociedade brasileira pode ser superada se divergências fundamentais sobre os factos persistirem durante quase toda a vida.